Brasil, Nicarágua e Venezuela: entre eleições e rompimentos
Professor do Ceisc Bruno Segatto, faz uma análise sobre o posicionamento do Brasil, após atritos políticos com Venezuela e Nicarágua.
Em agosto de 2024, o Brasil se envolveu em atritos diplomáticos com os governos venezuelano e nicaraguense. Embora tenha sido por motivos diferentes, em comum está o fato de que o Brasil demonstrou incômodo diante do autoritarismo e da falta de transparência dos governos de Caracas e Manágua. Do mesmo modo, os desfechos dos dois casos indicaram as limitações da liderança brasileira na América Latina. Vejamos caso a caso.
Brasil e Nicarágua: um rompimento inesperado
Na semana em que os olhos do mundo estavam voltados para as Olimpíadas de Paris, um acontecimento chamou atenção no Brasil. Após ter seu embaixador expulso da Nicarágua, o governo brasileiro expulsou a embaixadora nicaraguense do país. As expulsões culminaram no rompimento de relações diplomáticas entre Brasil e Nicarágua. O acontecimento inesperado foi o desfecho de um conturbado processo de negociação entre os governos de Brasília e Manágua. Quais foram as causas deste rompimento? Esse tipo de acontecimento é inédito no Brasil? Quais as possíveis repercussões a partir de agora?
Embora tenham sido aliados de longa data, Lula e Daniel Ortega se afastaram nos últimos anos. Junto a outros países críticos a regimes autoritários, o governo brasileiro se afastou de Manágua após o resultado questionável da eleição presidencial de 2021. Com 75% dos votos favoráveis, o pleito selou mais uma reeleição ao presidente Daniel Ortega - a quarta consecutiva desde 2007. O resultado foi obtido após sete candidatos da oposição terem sido presos e impedidos de concorrer. Ademais, nos anos anteriores, milhares de opositores ao seu governo foram perseguidos e presos. O Brasil fez parte dos países que condenaram essas arbitrariedades e, assim, angariou a antipatia de Ortega.
O ano de 2023 foi crucial para o processo de deterioração das relações entre Brasil e Nicarágua. O governo brasileiro endossou a defesa da democracia e da transparência dos processos eleitorais após as conturbadas eleições de 2022 e dos atos de 8 de janeiro. Desta forma, as políticas interna e externa de Lula se orientaram pela defesa da democracia. Esta reorientação colocou Brasília em rota de possível colisão com os governos da Nicarágua e da Venezuela.
No mesmo ano de 2023, em março, o Brasil foi um dos países que protestaram no Conselho de Direitos Humanos da ONU contra a decisão da Nicarágua de retirar a nacionalidade de mais de 300 opositores, como jornalistas, escritores, intelectuais e religiosos. Em junho, o governo brasileiro subscreveu uma resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA) reivindicando o retorno da democracia na Nicarágua.
Um dos setores mais perseguidos pelo governo Ortega foi a Igreja Católica. Missionários, sacerdotes e bispos vêm sendo alvos da perseguição governamental por meio de prisões e expulsões do país. O caso mais emblemático foi o do bispo Rolando José Álvarez, preso duas vezes pelo regime de Manágua. Diante das arbitrariedades, o clero nicaraguense recorreu ao Vaticano. A Santa Sé, por sua vez, buscou a ajuda do Brasil.
Ao visitar o Papa Francisco, no Vaticano, o presidente brasileiro recebeu do Sumo Pontífice o pedido de ajuda. Lula aceitou o desafio de intermediar as negociações entre Vaticano e Nicarágua pela libertação do bispo. O mandatário contava com a afinidade ideológica e o histórico de relações amistosas entre os dois governos, mas foi surpreendido com a postura de Daniel Ortega.
Em uma destas iniciativas de intermediação, o presidente nicaraguense sequer atendeu um telefonema de Lula. Começavam ali, os atritos entre os dois chefes de Estado. Em uma entrevista, o presidente brasileiro se queixou da atitude de Daniel Ortega, ocorrida em janeiro de 2024. O nicaraguense, por sua vez, ficou incomodado com a fala pública do mandatário. Ainda que o bispo tenha sido solto em janeiro, daquele mês em diante os governos de Brasília e Manágua se mantiveram afastados.
Com o esfriamento das relações bilaterais, o embaixador brasileiro recebeu do Itamaraty recomendações para não participar de festividades do governo local. O estopim da crise ocorreu em fins de julho. O fato determinante foi a ausência do embaixador, Breno de Souza da Costa, nas festividades de aniversário de 45 anos da Revolução Sandinista.
A efeméride é o principal evento cívico da Nicarágua, pois rememora a vitória do levante popular contra a ditadura de Anastasio Somoza, apoiado pelos Estados Unidos. Ocorrido entre 1979 e 1990, o movimento armado foi conduzido pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que era liderada por guerrilheiros inspirados na Revolução Cubana, como Daniel Ortega. Com forte respaldo popular, o movimento rebelde contou com o apoio de religiosos católicos ligados à Teologia da Libertação.
Diante da ausência do representante brasileiro na festividade, o governo de Manágua determinou a expulsão do embaixador do país. Adotando o princípio da reciprocidade, por sua vez, Brasília expulsou a embaixadora da Nicarágua no Brasil, Fulvia Patricia Castro Matu. De volta ao país de origem, Fulvia foi nomeada Ministra da Economia Familiar. Com as expulsões, encarregados de negócios de níveis hierárquicos inferiores assumiram os postos diplomáticos. Na prática, isso significa um rebaixamento da importância atribuída aos dois países mutuamente.
A substituição de um embaixador por um encarregado de negócios não é inédita na história brasileira. Em maio de 2024, o Brasil retirou o embaixador do país em Israel após uma série de divergências com o governo de Benjamin Netanyahu. No entanto, a situação envolvendo a Nicarágua foi inédita na trajetória brasileira. Quais podem ser as repercussões deste fato a partir de agora?
Brasil e Venezuela: as possíveis repercussões do rompimento
As repercussões diretas do rompimento para o Brasil são nulas. Brasil e Nicarágua não têm fronteiras e estão geograficamente distantes um do outro. O fluxo de comércio com a Nicarágua é insignificante, assim como o número de brasileiros residentes no país. Do mesmo modo, não há uma comunidade nicaraguense expressiva em nenhum Estado brasileiro. Desta forma, as repercussões são mais simbólicas e políticas.
O rompimento assinalou as limitações da atuação do Brasil enquanto um líder e negociador regional. É simbólico que um país que reivindica um lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas tenha tido um resultado como este em uma negociação com a pequena Nicarágua. Embora não tenha sido “derrotado” na negociação, o desfecho vem sendo caracterizado como derrota pela oposição ao Governo Federal no Congresso Nacional. Estas críticas ocorrem principalmente por parte de congressistas que condenam a política externa brasileira em relação a governos autoritários, como o da vizinha Venezuela.
Em julho de 2024, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi reeleito para um terceiro mandato consecutivo de 6 anos. O resultado, no entanto, foi questionado pela chapa opositora, composta por Edmundo Gonzalez de Urrutia e Maria Corina Machado. Assim como na Nicarágua, candidatos da oposição foram impedidos de realizar suas inscrições. Outros tantos se encontram presos ou no exterior, como Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente após as eleições de 2019. Alegando fraude, a oposição conclamou a população a protestar nas ruas. Igual ao seu congênere nicaraguense, o regime venezuelano reprimiu as manifestações e prendeu mais de 2 mil pessoas.
Ao longo do ano, o governo brasileiro procurou se colocar como um observador crítico do processo eleitoral. Em fins de 2023, a Noruega mediou um acordo entre Maduro e a oposição. Os Acordos de Barbados previam que o governo de Caracas garantiria a transparência do processo eleitoral e tiveram o Brasil como testemunha. No entanto, logo no começo da corrida eleitoral, o governo venezuelano descumpriu o pactuado ao inviabilizar candidaturas da oposição.
Frente a estas medidas de Maduro, Lula deu declarações públicas em prol da transparência no pleito venezuelano. Incomodado, o presidente-candidato questionou o processo eleitoral brasileiro e teceu críticas a Lula. Diante destas declarações, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a cancelar o envio de observadores que acompanhariam o pleito venezuelano. Apesar disso, Lula enviou a Caracas seu Assessor Especial para Assuntos Internacionais, Celso Amorim. O ex-chanceler, no entanto, não conseguiu obter junto a Caracas as garantias e a transparência demandadas por Brasília.
Desta forma, o roteiro para uma nova crise está posto. Maduro já expulsou embaixadores de sete países latino-americanos: Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai. Junto com Colômbia e México, o Brasil reivindica a divulgação das atas eleitorais pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano. Outros países, como Argentina e Estados Unidos, já reconheceram González e Corina como os legítimos vencedores do pleito.
O governo Maduro, por sua vez, rechaça as acusações da oposição e condena o que chama de “intervenções imperialistas” nas questões internas da Venezuela. O impasse está criado e o Brasil está novamente envolvido, embora, desta vez, não esteja sozinho. Caso haja uma repetição do desfecho nicaraguense, a Venezuela tende a ser mais prejudicada. Um eventual rompimento com o Brasil deixaria o regime de Maduro ainda mais isolado e vulnerável às sanções internacionais.
Para o Brasil, um eventual rompimento poderia implicar em dificuldades de fornecimento de energia elétrica para Roraima. Além de ter uma fronteira com a Venezuela por onde passam milhares de emigrados, o Estado depende da energia venezuelana, pois não está integrado ao Sistema Interligado Nacional.
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